A Viagem de Chihiro é o grande clássico de Hayao Miyazaki e a obra responsável por catapultar um dos mais prestigiados estúdios de animação do mundo, o Studio Ghibli. Entre diversas premiações, é a única produção animada em língua não-inglesa a conquistar um Oscar.
Recentemente, o filme A Viagem de Chihiro voltou a ser destaque na mídia devido à canção da Billie Eilish, que leva o nome da protagonista no título. No Brasil, porém, o assunto estourou mesmo com o remix da música intitulado “MTG Chihiro”, produzido pelo DJ e produtor carioca Mulú, que virou trend no TikTok.
Fiquei feliz com toda a repercussão das músicas e pelo reaquecimento das notícias, conteúdos e conversas sobre o filme, e tenho certeza que os demais fãs da obra também gostaram, mesmo aqueles que não curtiram as músicas.
Para quem não conhecia, essa é também uma oportunidade de descobrir essa animação incrível e participar das discussões e reflexões que ela provoca. Este artigo faz parte disso.
A Viagem de Chihiro é um filme que me marcou, seja pela grandiosidade e sensibilidade da obra, seja pelas suas semelhanças com Alice no País das Maravilhas, outra história pela qual tenho muito carinho.
Este texto não é exatamente uma resenha, mas uma reflexão pessoal sobre o filme, que talvez simpatize com suas concepções ou não, e está tudo bem.
Deixo claro também que não tenho a pretensão de criar especulações sobre “mensagens” ou “lições” supostamente embutidas na história. Na verdade, não gosto nenhum pouco desse tipo de abordagem, e comento sobre isso ao longo do texto.
Se você também gosta do filme ou ainda não viu e ficou curioso depois do sucesso das músicas, acho que vai curtir a leitura!
Sobre o filme a Viagem de Chihiro
A Viagem de Chihiro (“Sen to Chihiro no Kamikakushi” ou “Spirited Away”) conta a história de uma menina que está mudando de cidade com os pais, frustrada por abandonar seus amigos e sua antiga casa. O filme ganha corpo quando a família, a seu desgosto, resolve parar em um antigo parque temático abandonado.
Neste lugar, seus pais são seduzidos por um grande banquete preparado em uma espécie de restaurante local, sem ninguém por perto. Ao provarem da comida, eles se transformam em porcos selvagens e Chihiro, apavorada, se vê em uma cidade mágica na qual se encontra uma casa de banhos termais habitada por espíritos e seres fantásticos.
A partir daí, a protagonista inicia sua jornada com o objetivo de resgatar seus pais e retornar ao mundo real.
À princípio, os eventos parecem aleatórios, um conjunto de acontecimentos e personagens desconexos ― sobretudo para nós, habituados com os roteiros simplistas do cinema norte americano. Entretanto, as sutilezas da animação logo deixam claro que uma das principais intenções de Hayao Miyazaki, escritor e diretor da obra, é gerar emoções e percepções no espectador.
A “mensagem” do filme A Viagem de Chihiro
É um vício bobo, talvez alicerçado no estilo de educação que tivemos, que nos viciou em querer encontrar lições de moral ou significados em tudo. Como o próprio Miyazaki é bastante discreto, não há como saber se houve, de fato, alguma intenção nesse sentido.
Na minha opinião, acontece com o filme A Viagem de Chihiro o mesmo que observamos em obras clássicas, como Alice no País das Maravilhas. Ao que tudo indica, seus criadores não embutiram nenhuma grande mensagem oculta ou revelação nas histórias, mas tiveram a genialidade de construir metáforas que podem ser entendidas de inúmeras formas.
Esse tipo de narrativa nos convida a complementá-la. Tentamos interpretar o o enigma dentro de nossas cabeças, utilizando o que temos disponível. O filme é, portanto, uma experiência única para cada pessoa que o vê, pois cada um o preenche com o que acredita, com o que vive e com o que sente no momento.
É um daqueles filmes e livros que, a cada vez que se assiste ou lê, de tempos em tempos, testemunhamos algo novo. O filme é sempre o mesmo, mas o que sentimos, o que vivenciamos e o que somos, tudo muda, modificando também o nosso olhar sobre a obra.
É claro que há sim críticas explícitas contra o capitalismo, o consumismo, a poluição e o egoísmo, mas esses elementos são abordados de uma forma muito “orgânica” (natural), sem excessos.
Tudo isso é importante, mas a questão é que quando nos preocupamos demais com “mensagens secretas”, “conselhos generalistas” e outras especulações, perdemos boa parte da introspectividade que a obra nos proporciona.
Uma produção caprichada que fascina
Antes de apresentar a minha visão sobre o filme, devo confessar que o que mais me tocou a primeira vez que o vi não foi a história e seus intrincados elementos, mas toda a sensibilidade trabalhada por seus produtores em cada detalhe.
O piano suave por trás de todas as cenas, os marcantes momentos de silêncio em que os personagens observam e refletem sobre o que se passa ― o que não deixa de ser um convite para refletirmos também ―, as cores, os cenários, as ricas expressões e os sutis comportamentos de cada personagem que falam muito mais do que suas palavras.
A impressão que temos é a de mergulhar em uma obra de arte, afinal, é uma verdadeira obra de arte, algo que nos chama atenção pelo estético, mas que nos cativa por dentro. A Viagem de Chihiro é um filme com potencial para amolecer o coração mais ranzinza.
O grande eixo do filme é a evolução de Chihiro
Ao ver o filme pela primeira vez, é normal se sentir um pouco confuso no início. Isso acontece porque a história não nos conta as origens de quase nada, a não ser as da própria Chihiro.
A experiência que temos é a mesma de um observador que chega num lugar distante e desconhecido e tenta compreender, sem muito sucesso, o que se passa.
Seja uma estratégia do diretor, seja apenas uma característica da obra, o fato é que essa sensação de estranhamento diante de uma série de acontecimentos aparentemente sem sentido nos aproxima muito do que, provavelmente, sente Chihiro.
Esse cuidado ao representar as expressões e os sentimentos da protagonista, sobretudo a evolução do seu comportamento ao longo do filme, nos convida a enxergar os acontecimentos através dela.
Assim como em Alice no País das Maravilhas, o grande eixo de A Viagem de Chihiro é o amadurecimento da personagem principal, e o mais interessante é a maneira sutil com que essa transição nos é apresentada.
É algo completamente diferente das histórias “tradicionais”, em que um grande acontecimento, um clímax, muda, de repente, o comportamento da personagem.
Sentir primeiro, entender depois
Mais uma vez, é impossível não comparar o filme de Miyazaki com Alice. Em ambas as histórias, acompanhamos uma menina muito esperta que parece tentar compreender o mundo que a cerca a partir de uma profunda experiência lúdica.
Em A Viagem de Chihiro, gosto de pensar que, se tudo o que se passou foi um sonho ou uma riquíssima experiência mental da garota, todos os desconfortos e descobertas que viveu seriam representações da angústia que sentia por abandonar sua antiga cidade e seus amigos para encarar um novo lar, à princípio desconhecido e hostil.
O conturbado desenrolar do filme também se assemelha à Alice no País das Maravilhas. Embarcamos em uma sequência de eventos fantásticos e somos apresentados a diversos personagens esquisitos. Inicialmente, as coisas não parecem fazer sentido, mas logo enxergamos o quebra-cabeças e nossa mente começa a tentar pôr ordem no caos.
Acredito que é nesse momento que muita gente se dispersa na tentativa de encontrar um eixo linear na história. A Viagem de Chihiro é um filme que nos toca pelos detalhes: os simbolismos, as cenas, as expressões, a música.
Quando qualquer um desses detalhes o fisga, a parte “macro” da história fica em segundo plano. Afinal, estamos falando de uma obra extremamente sentimental, uma experiência que está muito mais no sentir do que no entender. Ou, pelo menos, é assim que a vejo.
Os simbolismos do filme
Mais uma vez, devo dizer que as ideias deste texto refletem as minhas interpretações pessoais. Não é meu objetivo criar nenhuma teoria sobre a obra, mas apresentar o meu olhar sobre ela. Espero que isso incentive você a também refletir sobre o filme e inspire suas próprias interpretações.
Não vou falar de todos os personagens, pois são muitos e até aqueles com poucas aparições são riquíssimos e renderiam longas discussões. Foco naqueles que mais chamaram a minha atenção.
Os pais de Chihiro como “porcos”
Logo no início do filme, quando os pais de Chihiro se entregam facilmente à tentação da comida ― que, certamente, não era para eles ―, muitas coisas passam em nossa cabeça.
Essas tentações que dominam os adultos e não tanto as crianças, que ainda não foram tão condicionadas, pode ser atribuída a várias coisas: gula, sexo, ganância, consumismo.
Eles nem se questionaram se a comida era mesmo para os visitantes, nem se preocuparam com a possibilidade de faltar alimento para alguém. É um comportamento que ilustra a ambição da vida adulta, que por vezes atropela os outros por puro egoísmo.
E vale destacar a fala da mãe de Chihiro que diz que está tudo bem comer a comida, pois depois pagariam por ela. Ou seja, o “dinheiro resolve tudo”, percepção que, embora falsa, está profundamente impregnada nas noções de moral e justiça.
A casa de banho para “espíritos sujos”
Sei que o filme utiliza uma série de elementos do folclore e da cultura japonesa, mas não consigo deixar de me tocar pelas reflexões sociais e econômicas que o filme aborda (ou parece abordar).
A casa de banho para espíritos é um ótimo exemplo. Entidades imundas, repletas de dinheiro, ― e podemos entender essa “sujeira” tal como usamos a expressão no figurativo (corrupção, golpes, roubo, avareza) ― que são limpas por trabalhadores alienados e explorados.
De um modo lúdico e bem humorado, enxergamos naquele ambiente uma frustração social histórica: personalidades poderosas, como governantes e empresários de alto escalão, que cometem os mais bárbaros crimes, mas é o povo, o trabalhador comum, que acaba sendo obrigado a lidar com as consequências (a “sujeira”).
A distorção da identidade dos trabalhadores da casa de banho
A reflexão sobre identidade é também algo muito importante no filme. O fato de Yubaba, proprietária da casa de banhos, roubar o nome de Chihiro (simbolizando uma espécie de sequestro de identidade) e determinar um novo nome para ela naquele local pode ser interpretado de muitas formas.
O que vem à minha mente imediatamente é a nossa atual referência de status na sociedade, na qual as pessoas são definidas por suas funções ou carreiras, ocupações que só fazem sentido dentro do contexto industrial em que vivemos. Em um mundo no qual o nome (ou a identidade, as raízes) não importa, seu valor é medido apenas pelo que você faz e pelo status que obtém a partir disso.
Outro filme que aborda algo parecido é Close-up (1990). Na história, um homem apaixonado por cinema se passa por um famoso diretor e é tratado com a mais nobre atenção e respeito. Entretanto, quando descobrem que ele é um farsante, o tratam como um indigente, o mesmo homem que, outrora, consideravam extremamente interessante e agradável. O que mudou? Seu status! O que nos leva a refletir sobre o fato de, na nossa sociedade contemporânea, quem você é pouco importa, as pessoas só olham para o crachá e para as suas posses.
Como ninguém vê valor no que você é, nas suas origens, apenas na profissão para a qual você se formou, na área em que atua, seu cargo ou seus bens, não temos escolha se não tentar aperfeiçoar ao máximo as nossas funções sociais. As aparências e o status passam a fazer cada vez mais parte das nossas vidas, até tomá-las por completo.
Passamos, então, a nos definir pelo trabalho que fazemos, pela carreira que construímos e pelas coisas que temos, nos esquecendo de quem realmente somos. Uma metáfora que dialoga com o marxismo.
Alienados como nós, os trabalhadores da casa de banho não fazem ideia de quem são. Vivem pelo que fazem e se entregam facilmente a tentações, como comida e ouro.
A jornada de redenção e resgate de Haku
Haku é um jovem misterioso que aparece como aliado de Chihiro, ajudando a garota a sobreviver no mundo dos espíritos e a evitar confusões por lá. A conexão entre os dois personagens é marcante e esse é um dos pontos em que o sentimentalismo da obra fala alto.
Entre várias outras camadas, Haku é um exemplo perfeito das dualidades presentes no filme, ilustrando como as fronteiras entre o bem e o mal, o real e o imaginário, são tênues. Ele também destaca a complexidade dos personagens nos filmes do Studio Ghibli, sempre multifacetados e com uma trajetória marcante que influencia suas essências e comportamentos.
Na narrativa, a metáfora da maldição que aflige Haku é carregada de simbolismos que se encaixam nos mais diversos contextos. O que é notável é que a sua transformação em dragão vai muito além de uma mudança física, é uma representação dos valores perdidos naquele lugar e da sua vontade de resgatar a sua verdadeira essência.
Essa jornada de redenção e autodescoberta adiciona ainda mais profundidade emocional à narrativa, enquanto sua relação com Chihiro ilustra a importância das conexões humanas na superação de desafios.
Sem Face e as máscaras sociais
Por fim, não podemos nos esquecer de Sem Face, o personagem mais enigmático da história. Misterioso e intrigante, o que não faltam são interpretações sobre ele na internet. As principais que encontrei foram:
- consumismo e ganância: um ser solitário e silencioso que quando exposto à riqueza e à ganância, se torna uma entidade arrogante e consumista;
- transformação e redenção: ao longo do filme, Sem Face passa por uma jornada de transformação e aprendizado, o que ilustra sua capacidade de mudar, de superar vícios e encontrar a redenção;
- transformação e influência do ambiente: Sem Face tem a habilidade de absorver características e comportamentos das pessoas ao seu redor, o que pode ser uma representação da influência que o ambiente e as interações sociais têm sobre nós;
- máscaras sociais e identidade: Sem Face usa uma máscara que esconde seu verdadeiro rosto, o que pode simbolizar as diferentes máscaras sociais que usamos para nos encaixar na sociedade, bem como o fato de escondermos a nossa verdadeira identidade para nos ajustar às expectativas dos outros.
Das quatro interpretações citadas, me simpatizo muito com as duas últimas. Sem Face não tem uma face, uma personalidade própria, apenas reproduz o seu entorno.
Perto de Chihiro, ele é uma companhia doce e aconchegante, tal como ela é com ele. Dentro da casa de banho, porém, ao redor de pessoas mesquinhas e arrogantes, ele se torna um ser deplorável, o ápice de tudo o que há de ruim no comportamento mundano dos trabalhadores do local.
Gostamos de pensar que há muitos Sem Face por aí, pessoas que parecem não ter uma essência, apenas repetem padrões e comportamentos à sua volta. O fato, porém, é que todos nós somos assim, em diferentes graus.
A pessoa que somos quando estamos sozinhos não é a mesma que somos quando estamos com nossos familiares ou aquela mais ousada que surge na roda de amigos.
É uma característica do instinto social humano, absorvemos e nos adequamos ao grupo em que estamos. Mas uma coisa é certa: quanto mais nos conhecemos, quanto mais compreendemos as nossas raízes (familiares, sociais e biológicas), menor é a disparidade entre esses personagens. Nos tornamos pessoas menos influenciáveis.
Indo um pouco mais fundo, Sem Rosto somos nós, vagando pela sociedade, nos moldando pelas influências ao redor. É uma ilustração de como as experiências moldam a nossa identidade e de como é difícil preservar as nossas raízes.
A Viagem de Chihiro é um retrato sensível das transições da vida
De maneira geral, o filme é habilmente construído para refletir o amadurecimento pessoal do indivíduo na sociedade e todas as dores e descobertas embutidas nesse processo. Algo muito semelhante à trajetória de Alice, na obra de Lewis Carroll, que também ilustra os desafios intrínsecos da transição entre a infância e a idade adulta.
Chihiro, assim como todos nós, se deparou com a necessidade de sobreviver e se afirmar em um mundo desconhecido, onde as regras, os valores e as certezas são muito mais frágeis do que gostaríamos.
É também importante observar que, embora a história seja marcada por muitos encontros e parcerias, a jornada de Chihiro é solitária.
Logo no início, ela se distancia bruscamente dos pais e se vê diante do desafio de confrontar a realidade sem o apoio, a segurança e o conforto da família. Depois, precisa lidar com figuras e situações de todos os tipos, na maioria das vezes contra a sua vontade.
Pouco a pouco, diante de inúmeras descobertas, desafios e dores, suas percepções e suas ações vão ganhando solidez.
Observo um forte retrato desse amadurecimento no fim do filme, na cena em que Chihiro pega o trem junto com Sem Face para encontrar Zeniba, a irmã gêmea de Yubaba ― cena, que por sinal, também está na capa deste post.
Os dois sentados um ao lado do outro em silêncio nos toca, em vista do passado turbulento de ambos. Chihiro, em especial, no início tagarela e apavorada, agora se vê cansada, porém firme, serena e perseverante.
É claro que há muitos outros elementos a se discutir e refletir em A Viagem de Chihiro, mas vou encerrar por aqui. Há muito tempo nutria a vontade de escrever algo sobre este filme, uma obra que me marcou muito na adolescência, quando a descobri.
Está feito, e termino com uma nostalgia boa das emoções que essa história me proporcionou, e espero que recordá-la tenha sido proveitoso para você também.
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