As expressões “dizem os cientistas”, “diz a ciência”, “comprovado cientificamente”, entre outras, são frequentemente empregadas de maneira inadequada. Um problema que, muitas vezes, se deve a erros na interpretação de dados científicos.
Em 1970, Linus Pauling, um dos bioquímicos mais importantes do século XX — e único pesquisador na história a receber, sozinho, dois prêmios Nobel em áreas distintas —, lançava a obra: “Vitamin C and the Commom Cold” (no Brasil: “Vitamina C e resfriado”).
De longe, esse foi o seu trabalho mais popular e, desde o lançamento, livro e autor são usados como argumentos fortes pela indústria e por defensores desse tipo de suplementação.
A polêmica de Pauling — que desdobrarei melhor nos próximos parágrafos — é relativamente famosa, mas o assunto não é muito bem esclarecido, o que deixa brechas para publicidade indevida e muita confusão, especialmente na internet.
Infelizmente, esse tipo de desentendimento é muito comum e não se deve apenas ao esforço de charlatões.
Leitores e produtores de conteúdo devem ter cautela ao analisar trabalhos científicos e, neste texto, trago algumas orientações nesse sentido.
Analisando o perfil de postagens famosas e o comportamento dos usuários na internet, reuni 5 erros muito comuns na interpretação de dados científicos que merecem a nossa atenção, especialmente em tempos de muito charlatanismo e fake news:
- 1. Tratar opiniões como fatos científicos
- 2. Ignorar dados inconsistentes devido à reputação do autor
- 3. Confundir interpretações com evidências
- 4. Superestimar estudos isolados
- 5. Não checar a qualidade das fontes
Você confere cada um deles em detalhes, a seguir.
1. Tratar opiniões como fatos científicos
É aceitável que a fala de um especialista tenha maior valor tendo em vista a sua experiência e seu domínio sobre um tema.
Você espera que o médico que avalia seus exames de saúde seja uma pessoa que dedicou vários anos de sua vida a esse conhecimento e que, por isso, tem maior bagagem e contexto para julgar essas informações e apresentar soluções.
O mesmo vale para o pesquisador que presta esclarecimentos sobre um tópico do seu interesse em uma matéria de jornal, por exemplo. Presumimos que a autoridade em questão sabe mais do que nós e, portanto, seu posicionamento é mais confiável.
Entretanto, é preciso esclarecer um ponto essencial para a credibilidade do conhecimento científico: a ciência não é uma questão de opinião!
Todo profissional é livre para manifestar suas opiniões e conclusões particulares, inclusive médicos e cientistas, mas só podemos tratar um argumento como científico, de fato, quando as evidências são postas à mesa, ou seja, quando estudos confiáveis corroboram com a argumentação. O mesmo vale para experiências pessoais ou conclusões de senso comum.
Devemos entender que aqueles que detém algum título ou autoridade, do autor mais influente ao médico da sua cidade, também têm visões particulares e também podem cometer erros.
2. Ignorar dados inconsistentes devido à reputação do autor
Os argumentos de Pauling sobre a vitamina C são frequentemente tratados como fatos científicos dada a notável reputação do autor. Quem ousaria questionar o ganhador de dois prêmios Nobel?
A questão é que seus argumentos são questionáveis e se há algo realmente comprovado cientificamente é que a vitamina C não apresenta influência significativa na incidência ou no tratamento de doenças respiratórias. Diversos estudos já foram conduzidos em todo o mundo justamente para testar as ideias do autor (apresentarei vários deles no tópico 4).
Isso não significa que Pauling seja uma completa fraude ou que seus demais trabalhos sejam também problemáticos. Refletimos aqui apenas as suas conclusões sobre a vitamina C.
Por que as orientações de Pauling são inconsistentes?
Os problemas na hipótese de Pauling começam logo nas dosagens recomendadas: na obra “Vitamina C e o Resfriado Comum”, o autor sugere a ingestão diária de 2.300 mg ou mais de vitamina C para uma saúde “ótima”.
Em um livro subsequente, intitulado “How To Live Longer and Feel Better”, ele cita que, “dada a variabilidade bioquímica individual, algumas pessoas deveriam ingerir até 20.000 mg diariamente”.
Considerando que, em média, os produtos mais populares do mercado trazem uma concentração de 500 mg, isso seria o equivalente a tomar 40 doses por dia!
E qual o problema nisso (além dos custos, claro)?
De acordo pesquisas e revisões de J. C. Guilland & B. Lequeu, autoridades acadêmicas das ciências da nutrição, “o intestino humano só é capaz de absorver, aproximadamente, 1.200 mg de vitamina C dentro de 24 horas e a absorção por dose geralmente não passa dos 300 mg”.
Isso significa que tentar adquirir uma grande quantidade de uma vez só (tomando uma cápsula de alta concentração, por exemplo) é puro desperdício: quase tudo será expulso na urina!
Existe algum risco de consumir altas doses de vitamina C?
A tabela internacional de Referência de Ingestão Dietética (Dietary Reference Intakes, DRIs) recomenda a ingestão diária de 90 mg de vitamina C para homens e 75 mg para mulheres.
Essas quantidades podem ser facilmente adquiridas por meio da ingestão de vegetais, especialmente legumes (como pimentão amarelo, couve, agrião e salsa) e frutas (como acerola, caju, goiaba, kiwi, limão e laranja). Uma laranja média, por exemplo, tem cerca de 40 mg de vitamina C.
Cinco porções variadas de frutas, verduras e legumes distribuídas ao longo dia fornecem mais de 200 mg de vitamina C. Além disso, os vegetais são ricos em fibras, proteínas e minerais, o que os torna uma fonte muito mais saudável de vitaminas do que comprimidos, cápsulas, pastilhas e outros compostos industriais.
A mesma tabela, bem como outras fontes respeitadas, como o “National Institute of Health” e a “Natural Medicines Comprehensive Database”, também destacam que a ingestão diária de vitamina C é segura em concentrações inferiores a 2.000 mg. Dosagens superiores são associadas ao aumento de risco de problemas hematológicos, renais e gastrointestinais.
Para saber mais, confira: Vitamina C: Altas Doses Previnem Resfriados?, por Charles W. Marshall [Saúde Direta]; Uso Racional da Vitamina C (Ácido Ascórbico), por Marco Sant’Anna e Alessandra Russo [Conselho Federal de Farmácia]; As Vitaminas do Nutriente ao Medicamento, por J. C. Guilland & B. Lequeu [Editora Santos];
3. Confundir interpretações com evidências
Muitas vezes, o equívoco da reportagem, do documentário ou do blog post parte da interpretação do artigo científico abordado. Que fique bem claro: nem todas as informações apresentadas em um artigo acadêmico são evidências científicas!
Em geral, esperamos que os dados estritamente científicos de um estudo se concentrem nas seções Materiais e Métodos (ou Metodologia) e Resultados.
Isso não significa que o Resumo, a Discussão e a Conclusão sejam irrelevantes, mas precisamos ter em mente que essas seções também podem trazer opiniões particulares dos pesquisadores ou hipóteses ainda não testadas.
Isso acontece porque os estudos, em sua quase totalidade, buscam solucionar questões específicas dentro de um contexto complexo. Ou seja, é altamente improvável (para não dizer impossível) que uma só pesquisa solucione todos os problemas de uma área.
Logo, é também papel do pesquisador discutir os resultados obtidos relacionando-os com trabalhados anteriores e questões ainda em aberto, bem como ressaltar as possíveis implicações teóricas e práticas do estudo.
A questão é que essas interpretações e conclusões podem divergir entre pesquisadores, o que é absolutamente natural, especialmente em assuntos muito recentes ou que ainda contam com poucos estudos disponíveis.
O que o leitor e, principalmente, o produtor de conteúdo precisam entender é que os pesquisadores podem ter opiniões e interpretações particulares que não foram contempladas nas análises conduzidas no estudo. E é fundamental que isso seja esclarecido ao público.
Nesse sentido, se a comunidade acadêmica também está sujeita a divergências, devemos tomar cuidado para não cairmos em outra armadilha muito comum: tratar um artigo isolado como uma conclusão científica definitiva.
4. Superestimar estudos isolados
Para que um estudo seja considerado científico, ele deve, no mínimo:
1. ter sido publicado em um periódico (revista científica) respeitado em sua área;
2. apresentar métodos confiáveis, coerentes com outros trabalhos da área e reproduzíveis, ou seja, que podem ser reproduzidos por outros pesquisadores.
No entanto, para que um argumento seja apresentado como “cientificamente comprovado”, são necessários vários estudos a fim de que as principais questões em torno do tema sejam devidamente esclarecidas.
Tirar conclusões abrangentes de um único artigo, por melhor que ele seja, é algo precipitado que pode levar a grandes equívocos. Por isso, é fundamental revisar diferentes trabalhos produzidos ao longo do tempo para obter respostas mais precisas.
Os dois procedimentos de revisão mais usados por pesquisadores para validar argumentos científicos são:
1. Metanálise: consiste em combinar resultados de diferentes estudos e integrá-los estatisticamente para obter um resultado comum;
2. Revisão sistemática: avaliação metódica dos trabalhos mais relevantes já publicados da área cujo objetivo é obter uma visão crítica, abrangente e atualizada sobre um tópico.
Esses recursos, portanto, são ideais para descobrir o que realmente se sabe sobre a ação da vitamina C na prevenção de resfriados. Vamos lá?
Para saber mais, confira: Revisão Sistemática e Metanálise: Padrão Ouro de Evidência? [PDF] da pesquisadora Cristina Pellegrino Baena.
A vitamina C previne resfriados?
Quando procuramos por pesquisas que tentam estabelecer alguma correlação entre a suplementação de vitamina C e a incidência ou a gravidade do resfriado comum, é impossível não se sentir confuso.
As pesquisas são conduzidas de maneiras muito variadas e as evidências encontradas são conflitantes, o que já nos desperta desconfiança.
Para ser bastante justo ao tema, devo destacar que existem sim trabalhos indicando que a suplementação de vitamina C (ou seja, a ingestão acima da recomendação diária) pode reduzir a incidência e a gravidade de resfriados.
Entretanto, quando analisamos esses trabalhos de perto, descobrimos carências e inconsistências que deixam muito espaço para dúvidas, como amostragens muito pequenas, variáveis relevantes negligenciadas e discrepâncias significativas nas dosagens ministradas e nos períodos de observação.
Uma revisão de 2016 publicada no American Journal of Lifestyle Medicine intitulada Vitamin C in the Prevention and Treatment of the Common Cold analisou nove trabalhos de grande repercussão — entre eles, metanálises que, juntas, somam mais de 100 ensaios sobre o tema.
De acordo com o texto, “embora exista um efeito fisiológico na suplementação regular de vitamina C na duração e na gravidade do resfriado comum, o significado prático desses achados não é muito convincente”.
Análises de grupos isolados, especificamente pessoas sob alto estresse físico (como esportistas e soldados em atividade) ou pacientes com deficiência de vitamina C constatada (diagnóstico comum em fumantes, por exemplo), parecem indicar algum benefício na suplementação. Entretanto, ainda são necessários estudos mais rigorosos para confirmar essa correlação.
Na população em geral, porém, as variações entre grupos experimentais (que usaram a vitamina C) e controle (que receberam placebo) é mínima ou irrelevante, seja na incidência, seja na duração dos resfriados.
A mesma conclusão é reafirmada por pesquisadores da Universidade Federal da Paraíba no texto Vitamina C na prevenção e tratamento do Resfriado Comum, publicado em 2020 no site oficial da instituição. Nele, outros trabalhos relacionados foram revisados pelos acadêmicos.
Importante: a vitamina C é um componente essencial da dieta. A suplementação pode ser necessária para pessoas com carência ou status marginal do nutriente, mas o ideal é que seja orientada por um médico ou nutricionista.
5. Não checar a qualidade das fontes
Para finalizar, alguns cuidados que precisamos ter ao ler ou produzir qualquer conteúdo de divulgação de ciência. Nem todo estudo aparentemente científico é pertinente ou de qualidade, e conflitos de interesse são relativamente comuns.
Encontramos problemas tanto na execução dos estudos quanto na seleção desses trabalhos. O primeiro caso acontece quando pesquisadores forçam resultados e conclusões arbitrariamente para atender interesses midiáticos ou mercadológicos.
No segundo, a seleção dos trabalhos abordados é realizada de maneira parcial a fim de embasar alguma argumentação.
Se devo desconfiar de quem faz o estudo e também de quem fala sobre ele, em quem posso confiar, então?
Primeiramente, desconfiar não é o mesmo que negar. O que quero reforçar aqui é a importância de ter senso crítico, inclusive com publicações oficiais ou argumentos de personalidades influentes.
Especialmente em um momento em que a criação de fake news nunca foi tão bem estruturada — temos que lutar contra profissionais, agências e até governos que se dedicam à propagação de notícias falsas —, questionar a origem, a autenticidade, a qualidade e a conclusão dos dados é fundamental.
Focando na divulgação e na interpretação de dados científicos (de livros e documentários de grandes produtoras a artigos em blogs, jornais e revistas populares), é importante fazermos as seguintes perguntas sobre o trabalho divulgado:
1. O artigo foi publicado em alguma revista acadêmica respeitada? Qual é o posicionamento de especialistas e autoridades da área em relação ao estudo?
2. O material está atualizado? Existem estudos semelhantes? Há resultados conflitantes? Há alguma revisão disponível (análise de vários estudos)?
3. Os pesquisadores envolvidos são devidamente credenciados e respeitados nesse campo de estudo?
4. Os métodos e resultados foram esclarecidos (embasamento teórico, amostragem, parâmetros, características dos dados etc.)?
5. A instituição que promoveu a pesquisa possui vínculo com alguma organização que tem interesse comercial ou especulativo no projeto?
6. As afirmações apresentadas no conteúdo são baseadas em evidências ou opiniões? O autor diferencia claramente os resultados das interpretações do estudo?
7. As conclusões apresentadas são realmente pertinentes (os dados apresentados são suficientes para embasar a afirmação do autor)?
8. Há alguma exposição exagerada de uma ideia, produto ou pessoa (hype)?
Parece muita coisa, mas tenho certeza que após ler este texto você certamente se lembrará de boa parte desses questionamentos ao se deparar com alguma reportagem ou artigo de divulgação científica.
Se consegui aumentar (um pouco que seja) a sua desconfiança em relação aos batidos “dizem os cientistas”, “diz ciência” e outros termos que vivem pipocando a internet, já ficarei satisfeito.
Só não pense que o desafio acaba aqui. A melhor forma de não errar na interpretação de dados científicos é entendendo, de fato, como esse conhecimento é construído.
Seja você um leitor, seja um produtor de conteúdo, lhe convido a conferir o texto Aprenda a ler e a criar conteúdos de divulgação científica, sem ser cientista!
Gestor de conteúdo, redator profissional e especialista em SEO (Otimização para Motores de Busca). Ampla experiência em Marketing de Conteúdo, Marketing de Afiliados, hospedagem de sites e blogs WordPress.