Você não precisa ser um cientista para compreender pesquisas acadêmicas, avaliá-las criticamente ou produzir conteúdos de divulgação científica. Mas deve, no mínimo, saber como esse conhecimento é construído para não enganar ou ser enganado por expressões famosas, como “comprovado cientificamente”, “diz a ciência” e outros termos frequentemente mal-empregados na web.
Este texto não é para acadêmicos — não há nada de novo para eles por aqui —, é para quem vive recebendo descobertas “bombásticas” nas redes sociais e, em especial, para você, produtor de conteúdo, que cria materiais de divulgação científica.
Diferentemente do que muitos pensam, a desinformação nem sempre é fruto do esforço de charlatões ou jornalistas mal-intencionados. Muitas fake news surgem a partir da interpretação equivocada dos dados, inclusive por profissionais honestos.
A má divulgação científica somada à carente compreensão pública da ciência potencializam a propagação de informações falaciosas. É um problema que ganhou maior dimensão diante da frenesi em torno de tratamentos controversos para a COVID-19 — apoiados, inclusive, por profissionais da saúde.
Neste texto, trago informações básicas para ajudar o leitor comum (que não tem conhecimento técnico) a filtrar melhor as informações que chegam pelos jornais, buscadores e redes sociais.
Faço um apelo, porém, aos escritores, jornalistas, redatores e influenciadores, que atuam na “linha de frente” da divulgação científica, para que considerem essas orientações ao produzirem novos conteúdos. Boa leitura!
- Quais são os erros mais comuns nos conteúdos de divulgação científica?
- O que significa comprovado cientificamente?
- Como encontrar resultados mais confiáveis?
- A ciência tem soluções definitivas?
- Que cuidados tomar ao ler ou produzir conteúdos de divulgação científica?
Quais são os erros mais comuns nos conteúdos de divulgação científica?
Ao acompanhar conteúdos divulgação científica publicados em grandes portais de notícias brasileiros e também em blogs, canais e perfis populares na internet, muitas pessoas se sentem enganadas com a aparente discrepância dos posicionamentos apresentados.
Um dia o ovo faz bem. Outro dia o ovo faz mal. Em quem confiar, afinal?
Essa confusão pode se dar por vários fatores, mas algumas práticas são quase sempre responsáveis por esse tipo de impressão:
- conclusões precipitadas: quando o estudo tratado necessita de mais dados, mas o redator ou jornalista assume uma posição de plena confiança nos resultados;
- trabalhos isolados: quando o produtor responsável pelo conteúdo aborda um único estudo ou apenas a conclusão de um pesquisador;
- opiniões tratadas como fatos: quando opiniões livres de profissionais ou pesquisadores são tratadas como provas científicas.
Não é preciso ser um cientista para identificar esses problemas, mas é fundamental entendermos, pelo menos basicamente, como funciona a ciência — principalmente quem está escrevendo sobre ela.
Eu também não sou pesquisador, mas isso não me impede de encontrar uma série de problemas nas matérias e postagens de divulgação de ciência. Podemos começar pelos famosos comprovado cientificamente ou diz a ciência. O que isso realmente significa?
O que significa comprovado cientificamente?
No dicionário, tudo aquilo que se trata por científico é entendido como algo “que não se orienta por ideologia ou senso comum, mas pela ciência e seus métodos”. Definido, portanto, “segundo os processos ou preceitos da ciência, metodologicamente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas”.
É uma definição justa, mas um pouco polida para o que desejamos esclarecer aqui. Basicamente, para que qualquer afirmação ou estudo seja considerado científico, dois pontos são fundamentais:
1. O trabalho de origem deve ter sido publicado em um veículo amplamente respeitado em sua área: revistas acadêmicas de prestígio contam com uma equipe especializada responsável por avaliar a qualidade dos trabalhos enviados pelos pesquisadores;
2. A pesquisa, seus métodos e resultados devem ser reproduzíveis: o estudo deve oferecer uma descrição detalhada dos experimentos de modo que qualquer pesquisador, em qualquer região do mundo, sob as mesmas condições, seja capaz de reproduzir os testes, os métodos e os aparelhos para obter os mesmos resultados e comprovar a sua relevância.
Entretanto, para que um conhecimento seja elegível ao cobiçado título de “cientificamente comprovado”, a questão é um pouco mais complexa — e isso se estende a outros termos que sugerem alguma generalização, como o esquisito diz a ciência.
Confira, a seguir, alguns esclarecimentos essenciais.
Hipóteses, teorias e opiniões
“Mas isso é só uma teoria.” — Eis um argumento falho capaz de deixar qualquer cientista possesso.
Tão importante quanto as palavras, é o contexto em que elas são empregadas. Termos técnicos da ciência são frequentemente julgados por sua definição na língua coloquial, o que gera uma verdadeira confusão na cabeça das pessoas.
Quer uma dica simples (mas não perfeita) para evitar essa armadilha? Faça uma busca no Google com a palavra que apresenta possível ambiguidade precedida por “definição científica”.
Obviamente, não vou esmiuçar todos os termos aqui. Tratarei apenas dos três mais polêmicos: hipótese, teoria e lei.
No contexto acadêmico, diferentemente do senso comum, as teorias são sempre baseadas em evidências científicas sólidas e, por isso, não são menos confiáveis do que as leis.
De maneira geral, as teorias esclarecem fenômenos da natureza e as leis são descrições generalistas desses fenômenos.
A hipótese, por sua vez, pode ser entendida como uma previsão ou especulação sobre um assunto, o que não significa, entretanto, que elas sejam meros palpites. Uma hipótese científica deve ter um enunciado claro, apresentar parâmetros (relação entre variáveis) e ser passível de comprovação.
Se você não tem nada disso, o que resta é apenas opinião.
Estudos observacionais e prospectivos
Nos estudos observacionais (ou retrospectivos), os pesquisadores analisam um evento já ocorrido, avaliando possíveis fatores que causaram ou contribuíram para esse desfecho.
Esses trabalhos nos ajudam a fazer inferências populacionais, mas não podem ser prontamente tomados como conclusões científicas, sobretudo pela dificuldade de se isolar a variável analisada.
Nos estudos prospectivos, por outro lado, as amostras ou indivíduos são conduzidos da “causa” para o “efeito”, ou seja, do presente para o futuro, o que confere muito mais controle na definição e no acompanhamento das variáveis.
Entre eles, os que merecem maior destaque são os chamados testes randomizados, aqueles em que os grupos utilizados no experimento são definidos de maneira aleatória.
Nos estudos clínicos de uma vacina, por exemplo, há um grupo experimental, que recebe o imunizante, e um grupo controle, que recebe um placebo (geralmente uma solução salina). Nem os pacientes, nem os pesquisadores (inicialmente) sabem quem recebeu cada um.
O mistério é necessário para impedir que os participantes interfiram nos resultados e os pesquisadores tirem conclusões precipitadas.
Como são menos suscetíveis a conclusões conflituosas e interesses particulares, os estudos prospectivos, sobretudo os testes randomizados, são considerados mais confiáveis.
Isso não significa que eles sejam “imunes” a problemas. Vários fatores podem comprometer os resultados de um experimento, inclusive os randomizados. Amostras muito limitadas, análises estatísticas incoerentes e até hipóteses mal formuladas podem conduzir pesquisadores e leitores ao erro.
É, por isso, que tirar conclusões de um único trabalho, ainda que ele seja de boa qualidade, é algo muito perigoso — o que nos leva ao próximo tópico.
Como encontrar resultados mais confiáveis?
Quando um pesquisador diz que algo é cientificamente comprovado, dificilmente ele estará se baseando em um único trabalho. Teorias amplamente aceitas na academia geralmente estão apoiadas em dezenas, centenas, se não milhares de estudos.
Os cientistas tratam de questões complexas que exigem análises numerosas e que jamais poderiam ser totalmente contempladas em uma só pesquisa. A ciência, portanto, é uma construção conjunta e global, ou seja, depende do esforço de diferentes equipes, instituições e nações ao longo do tempo.
Dessa forma, se queremos ter respostas mais confiáveis sobre um assunto, o ideal é analisarmos diferentes pesquisas, englobando seus resultados ou revisando uma a uma.
Chegamos, então, aos melhores métodos para se comprovar argumentos científicos: as metanálises e as revisões sistemáticas — mas precisamos tomar cuidado com elas também. Veja!
Metanálise
A metanálise é uma técnica estatística na qual os resultados de diferentes estudos individuais são combinados e integrados com o objetivo de obter um resultado comum. Em outras palavras, é uma revisão da literatura que recebe análise estatística.
A premissa técnica é que ao adicionamos novos dados a uma amostra, diminuímos o desvio padrão e o intervalo de confiança. Basicamente, isso significa que quanto mais informações você tem, mais confiáveis serão os seus resultados.
Sendo assim, ao integrarmos dados de diferentes estudos, estamos aumentando a confiabilidade dos resultados analisados. Há, inclusive, publicações que adicionam registros inéditos de maneira periódica, o que pode ser chamado de metanálise cumulativa.
Para que essas análises sejam realmente confiáveis, porém, é imprescindível que os dados sejam agrupáveis e estejam padronizados. Se os estudos integrados apresentarem metodologias e condições diferentes, a confiança da análise é comprometida.
Um artigo publicado em janeiro que relacionava o uso de ivermectina no tratamento de COVID-19 a uma redução do risco de morte em até 75% é um belo exemplo de metanálise mal conduzida.
Na realidade, o texto Preliminary meta-analysis of randomized trials of ivermectin to treat SARS-CoV-2 infection trata-se de um estudo preliminar (como diz o título) e os próprios pesquisadores esclarecem que “a metanálise está sujeita a problemas, pois foram incluídos trabalhos não publicados e há uma grande variação nos padrões de tratamento dos ensaios, nas doses ministradas e no período observado”.
O esclarecimento dos autores, porém, não impediu interpretações tortas e uma cascata de desinformação que tomou conta da internet. Típica má interpretação que dá voz a charlatões que defendem tratamentos controversos.
Embora a metanálise — quando conduzida corretamente — seja um instrumento prático para obter dados confiáveis, ela apresenta limitações que até estudos falaciosos e mal feitos como esse denunciam.
O principal deles é que nem sempre os protocolos utilizados pelos pesquisadores são equivalentes, especialmente em terrenos muito novos em que os parâmetros de pesquisa ainda estão sendo definidos.
Felizmente, há um modo ainda mais eficaz de analisar um conjunto de pesquisas, inclusive quando seus dados são heterogêneos: a revisão sistemática.
Revisão sistemática
A revisão sistemática é uma investigação científica na qual estudos relevantes sobre uma questão proposta são identificados na literatura, avaliados e comparados metodicamente. O objetivo é obter uma visão crítica de todo o trabalho até então divulgado sobre um tema.
Esses estudos podem incluir metanálises que abrangem todo o conjunto de dados (quando possível) ou apenas grupos combináveis. Quando não há metanálise, o trabalho pode ser chamado de revisão sistemática qualitativa.
Embora a estratégia de busca e os critérios adotados na seleção e na avaliação de artigos influencie a qualidade final dos resultados, esse tipo de revisão é considerado o nível mais alto de evidência científica.
Para saber mais sobre o assunto, recomendo a leitura do artigo Revisão Sistemática e Metanálise: Padrão Ouro de Evidência? [PDF] da pesquisadora Cristina Pellegrino Baena.
A ciência tem soluções definitivas?
O conhecimento científico não é estático. É um constante movimento impulsionado pela cultura, pela tecnologia e pela sociedade.
A cada nova descoberta, portas se abrem para investigações inéditas que, por vezes, trazem novas perguntas. É algo natural que demonstra a importância do esforço científico se manter vivo.
Autores prestigiados, como Steven Pinker e Richard Dawkins, têm feito um trabalho elogiável em defesa da ciência. Entretanto, muitas vezes pecam em suas obras ao tratá-las como um conjunto de respostas sólidas e definitivas para as necessidades humanas.
Nesse sentido, o trabalho dos pesquisadores se resumiria a completar as lacunas que os estudiosos do passado não foram capazes de preencher. Um pensamento que nos induz a acreditar que o mundo caminha rumo a uma espécie de platô no qual todas as questões terão sido resolvidas.
Na realidade, porém, não há nenhuma linha de chegada e discussões sempre existirão, inclusive entre os mais altos acadêmicos. Até as teorias mais consolidadas da academia podem sofrer algum ajuste ao longo dos anos.
A ciência, portanto, é um eterno debate e o saber científico é fluido. Mas nada disso compromete sua precisão ou importância.
Qualquer profissional que atua com responsabilidade sabe que deve tomar como parâmetro as mais recentes evidências científicas da sua área de atuação; mantendo-se aberto a novas conclusões, desde que apresentem o mesmo rigor científico dos dados anteriores.
Que cuidados tomar ao ler ou produzir conteúdos de divulgação científica?
Embora muito seja descoberto e produzido nas mais diversas áreas de estudo, o famoso depende está sempre presente: no diagnóstico de uma doença, no desenvolvimento de um projeto, bem como no entendimento de dados e teorias científicas.
Tudo depende. Depende de quê? De inúmeros fatores, e talvez seja esse um dos maiores desafios dos criadores: como produzir conteúdos de divulgação científica de forma didática, sucinta e precisa quando as respostas dependem de diversas variáveis?
Simplificamos tudo a ponto de banalizar o conhecimento ou abandonamos esse trabalho e concluímos que essas questões devem ser tratadas apenas por pessoas especializadas?
Bem, certamente há um “caminho do meio”, e é bom nos esforçarmos para trilhá-lo, pois os dois extremos acima são alguns dos responsáveis pela propagação tão bem-sucedida de informações falsas na população.
Como esclarecem Daniela Mercier e Lígia Souza em artigo para a Revista da Universidade Federal de Minas Gerais:
“uma divulgação científica adequada é aquela que torna o conhecimento especializado acessível às pessoas, sem perder de vista a complexidade dos conceitos e o contexto em que foram produzidos”.
Felizmente há ótimos canais de divulgação científica no país. Entretanto, a internet continua impregnada de conclusões precipitadas, trabalhos de baixa qualidade e termos técnicos mal empregados. Isso sem mencionar as postagens nas quais há interesse explícito em gerar desinformação.
Sendo assim, seja como leitor, seja como produtor de conteúdo, é fundamental ter:
cautela: conheça melhor o trabalho mencionado, questione as interpretações do autor, procure outras fontes e compare a opinião de profissionais diferentes antes de compartilhar ou divulgar qualquer estudo ou conclusão aparentemente científica;
responsabilidade: sempre avalie as possíveis implicações envolvidas na divulgação das informações, como possíveis interpretações equivocadas e adaptações arbitrárias que podem dar origem à fake news;
honestidade: não há nenhum problema em divulgar trabalhos preliminares, avanços incrementais e até publicações controversas, desde que todas as nuances e carências desses estudos sejam destacadas — o que você jamais deve fazer é apresentá-los como fatos ou induzir o leitor à má interpretação.
Ninguém precisa ser cientista para entender, falar ou escrever sobre ciência. Na realidade, somente quando a ciência (de verdade!) ganhar seu merecido espaço no universo popular — dos discursos oficiais às conversas de bar — é que poderemos vislumbrar um mundo livre de insanidades, como o boicote à vacinas ou a recomendação de tratamentos sem comprovação técnica.
Por enquanto, a compreensão pública do desenvolvimento científico e seus métodos deixa muito a desejar. E a maior prova disso é que até pessoas bem-intencionadas contribuem para a desinformação, compartilhando ou produzindo conteúdos de divulgação de ciências de maneira equivocada. Foram essas, inclusive, que me inspiraram a pesquisar e a reunir as informações deste texto.
É claro que também há aqueles que criam e propagam informações enganosas intencionalmente (muitas vezes de maneira explícita). Demonstro isso no texto “5 fatores que contribuem para o crescimento das fake news da saúde e da ciência“.
Por fim, há também de se questionar as autoridades. Nem sempre o que diz o cientista é um fato científico. Precisamos separar a ciência da opinião. Trato desse assunto em “Dizem os cientistas… Que cientistas? 5 erros comuns na interpretação de dados científicos“.
Quanto a este texto, fico por aqui. Espero que as informações te ajudem a questionar as suas próximas leituras e contribuam para a produção dos seus conteúdos de divulgação científica.
Se encontrar algum erro nas orientações do artigo, por favor, avise!
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