Vários fatores contribuem para o crescimento das fake news sobre saúde e ciência. E os charlatões não são os únicos culpados pela propagação de desinformação. Aparentemente, a ciência ainda não fez as pazes com o público, nem com o jornalismo.
Elas estão por toda parte: em reportagens, documentários, vídeos, tweets, posts, memes e todo o material que se pode imaginar. Sempre trazendo revelações chocantes e incendiando debates polarizados, do congresso nacional aos grupos de família no WhatsApp.
Já se foi o tempo em que esse tipo de conteúdo era quase sempre obra de sites caça-cliques e vendedores picaretas. Estamos diante de uma verdadeira indústria de desinformação. Um esforço sistematizado de empresas e profissionais de altíssima competência a serviço de pessoas e organizações sem qualquer compromisso com a verdade.
O problema não é novo, mas ganhou maior apelo durante a pandemia. A rapidez com que dados e notícias falsas afetaram decisões individuais, políticas e socioeconômicas no último ano nos dá uma dimensão do poder da informação no mundo contemporâneo.
Mas o que torna um conteúdo falso tão atraente?
O problema é muito complexo e passa por diversas áreas, da educação à justiça. Entretanto, no que diz respeito à criação de materiais de divulgação de saúde e ciência e o comportamento do público na internet, 5 fatores certamente contribuem para o crescimento das fake news.
Você confere cada um deles em detalhes, a seguir!
1. Dados reais fora de contexto
Vamos começar com um exercício simples. O que você sente ao ler um título como este?
“Brasil deve registrar até 625 mil casos novos de câncer até 2022.”
Parece algo terrível, não é? Mas, na realidade, esse título nos deve muita coisa.
O número estampado na matéria foi retirado da Estimativa 2020 – Incidência de Câncer no Brasil, publicação lançada pelo INCA (Instituto Nacional de Câncer) que traz o número esperado de casos de câncer por ano durante o triênio 2020-2022.
Embora o número seja grande, o INCA esclarece que houve uma melhoria na qualidade dos registros, na manutenção das séries históricas e no cálculo das estimativas. Além disso, por se tratar de uma doença crônica, não são esperadas mudanças significativas em pequenos períodos — os dados tratam de casos (diagnósticos), não de mortes por câncer.
Outro ponto destacado é que a estimativa reflete quadros socioeconômicos. A prevalência do câncer de mama entre as mulheres e do câncer de próstata entre os homens, por exemplo, está ligada ao aumento da expectativa de vida.
Trouxe esse exemplo logo no início para demonstrar como podemos ser enganados por um título, mesmo quando as informações divulgadas são reais e o conteúdo é informativo.
É papel do produtor chamar a atenção do público, mas ele deve ter em mente que nem todas as pessoas se darão ao trabalho de ler o artigo totalmente e esclarecer as pontas soltas do título.
Tendo constatado que poucos checarão a fonte do conteúdo, um charlatão sente-se livre para fazer correlações sem sentido — como atrelar a vacinação em massa contra a COVID-19 ao número de diagnósticos de câncer nos anos seguintes, por exemplo.
Além de confundir as pessoas e desencorajar atitudes essenciais, essas teorias afetam a credibilidade de instituições importantes. E isso é apenas a ponta do iceberg.
A indústria das fake news nem sempre precisa se dar ao trabalho de distorcer informações relevantes. Até grandes portais de notícias consolidados muitas vezes fazem questão de propagar desinformações.
2. Promoção de estudos não confiáveis
Observe o título publicado no dia 21 de janeiro de 2021 em um dos maiores portais de notícias do país.
O estudo em questão trata-se de uma metanálise, uma revisão em que dados de vários estudos são integrados estatisticamente para se obter um resultado comum.
O problema é que o trabalho não respeita praticamente nenhum dos protocolos previstos para esse tipo de revisão.
Os próprios autores esclarecem no texto original que a pesquisa é preliminar e requer novos estudos para confirmar suas inferências, pois contempla trabalhos não publicados, bem como ensaios com variações importantes nos métodos, nas dosagens e no período observado.
Em outras palavras, eles simplesmente misturaram dados desconexos para obter um resultado falsamente promissor. No entanto, esse esclarecimento só é citado no fim do texto do site.
Isso não impediu, entretanto, que as (óbvias) intenções do produtor do conteúdo se realizassem.
A maioria das pessoas que receberam o link desse conteúdo nas páginas de resultado do Google ou nas redes sociais provavelmente só leu o título. Entre os que acessaram, grande parte certamente compartilhou o link muito antes de terminar a leitura, e vários daqueles que receberam o link fizeram o mesmo.
Nesse sentido, não demorou muito para que a única informação relevante fosse retirada do conteúdo original e a desinformação fosse empacotada em um formato ainda mais viral.
Dado o alcance do veículo em que foi divulgado, é uma questão de minutos (minutos!) para que o falso resultado esteja circulando em blogs, redes sociais e grupos de WhatsApp de todas as regiões do país.
Mas não é só isso. Existem vários elementos nesse conteúdo que fortalecem o seu poder persuasivo. É o que você confere nos próximos itens.
3. Comportamento de leitura escaneado
É muita informação! Cascatas de conteúdo despejadas pelas redes sociais, buscadores, serviços de e-mail e blogs (como este, inclusive).
Para dar conta do recado, as pessoas tendem a adotar um comportamento de leitura apressado. Agem como um esfomeado tentando comer tudo de uma só vez, mal sentindo o sabor do que põe na boca. E o pior é que esse “banquete” está repleto de pratos velhos e estragados.
Prender a atenção das pessoas é um feito e tanto nos dias de hoje. A maioria simplesmente “escanea” as informações em busca de trechos que as interessam.
Vídeos e áudios são frequentemente acelerados ou saltados. Nos textos, o foco dos usuários é o topo da página, enquanto as informações seguintes são apenas “varridas” de maneira superficial.
Utilizando uma ferramenta de Marketing Digital que destaca as áreas da página que recebem mais atenção das pessoas em um período, frequentemente encontramos um padrão em “F” na maioria dos sites.
O resultado obtido é geralmente semelhante às imagens abaixo.
Essas imagens foram retiradas do estudo F-Shaped Pattern of Reading on the Web: Misunderstood, But Still Relevant (Even on Mobile), realizado pelo Nielsen Norman Group, que também destaca outros padrões de leitura.
De maneira geral, as pessoas tendem a absorver melhor o que está no topo e cada vez menos o que vem depois.
Isso não é nenhuma novidade para um produtor de conteúdo, e é algo que precisa ser trabalhado com sabedoria e ética. Todo redator que escreve textos para a web sabe (ou deveria saber) que precisa conquistar o leitor logo no título ou na introdução. É a maior oportunidade que você tem de ter, pelo menos, um intertítulo lido.
Entretanto, esse nem sempre é o interesse do autor. Os charlatões também sabem se aproveitar dos apressadinhos. É o caso do artigo citado no tópico anterior.
Os editores fazem de tudo para que você saia da página o mais rápido possível:
- o título traz toda a (des)informação que um charlatão ou negacionista necessita;
- a introdução é breve e traz termos técnicos para aumentar a credibilidade da afirmação do título;
- e os (falaciosos) resumos abaixo saciam qualquer curiosidade que o leitor pode vir a ter.
A informação é construída dessa forma para que o texto seja compartilhado imediatamente, antes que o único trecho realmente importante seja descoberto: aquele que comprova que o tal estudo não significa absolutamente nada.
Embora os produtores do conteúdo não sejam nada anfitriões com os usuários do site, todas as nuances do texto original são apresentadas — disponibilizam até uma opção de áudio que passará despercebida por quase todos os usuários. Dessa forma, a falsa conclusão científica é propagada e seus autores se isentam da acusação de fake news.
E tem mais! Os textos geralmente utilizam termos persuasivos para desarmar ainda mais o leitor: os gatilhos mentais.
4. Uso indevido de gatilhos mentais
Se você é um profissional de Publicidade, Marketing de Digital ou Copywriting sabe muito bem do que estou falando.
Os “gatilhos” podem ser imagens, sons, cenários ou expressões capazes de gerar percepções e emoções que estimulam as pessoas a tomarem uma decisão.
São clássicos instrumentos de persuasão e estão por toda a parte: nos comerciais, nos layouts e funções dos aplicativos, nas mensagens de e-mail, nos artigos da internet (inclusive neste), nos rótulos de produtos, na argumentação de vendedores e até no nosso trato com as pessoas. Você certamente os utiliza e nem se dá conta disso.
No que se refere aos textos de divulgação científica, porém, dois gatilhos são frequentemente utilizados: o argumento de autoridades e os números.
“Gatilhos” de autoridade
Nas colunas de saúde e ciência, os gatilhos de autoridade se apresentam em citações de personalidades influentes ou instituições de prestígio, e também nas famosas expressões “comprovado cientificamente”, “dizem cientistas”, “diz ciência” etc.
Esses termos são capazes de aumentar a confiança e o poder de influência das informações, o que é natural dado o papel da ciência na sociedade moderna. O problema é que eles são constantemente empregados em contextos inadequados.
Muito do que é supostamente “comprovado pela ciência” na internet, simplesmente não é. E o tal “dizem os cientistas” muitas vezes diz respeito apenas à opinião de pesquisadores e não a evidências demonstradas.
“Gatilhos” em números
Números são frequentemente utilizados para criar uma sensação de tecnicismo e precisão — mesmo quando eles não representam nada (como é o caso do estudo abordado há pouco). Não por acaso, também os encontramos em todos os lugares: nos títulos de artigos, vídeos, notícias, livros etc.
Os copywriters, que (quase sempre) estão por trás desses títulos, conhecem muito bem o seu poder de influência. Um estudo divulgado pelo Click Laboratory, inclusive, demonstrou que os títulos com números em destaque são mais persuasivos que tutoriais, afirmações ou perguntas, por exemplo.
Alguns profissionais defendem números certeiros capazes de aguçar o desejo da maioria das pessoas. O número 7, por exemplo, é o preferido dos gurus do Marketing Digital.
Tendemos a atrelar números a ordem, precisão e lógica. Eles agregam credibilidade aos argumentos — o que é de se esperar dados os seus princípios matemáticos —, mas nem sempre são verdadeiros ou coerentes.
Utilizando, mais uma vez, o exemplo do segundo tópico, qual dos dois títulos a seguir chama mais a sua atenção?
- “Ivermectina pode reduzir o risco de morte por COVID-19”.
- “Ivermectina pode reduzir o risco de morte por COVID-19 em até 75%”.
Na busca desenfreada por cliques e views da internet, os editores e produtores fazem todos os malabarismos possíveis para estampar um belo e atraente número nos seus títulos: destacam resultados preliminares como conclusões definitivas, omitem dados essenciais, selecionam valores de forma arbitrária, distorcem opiniões de profissionais, entre outras façanhas textuais.
Em todos os casos, o que realmente confirmará a validade do número é sua fonte e seu contexto. Mas para tirar a prova, será preciso se entregar, pelo menos parcialmente, à estratégia do autor. Ou seja, clicar no título e ler o texto até o fim.
Cuidado com os números!
5. Pouca compreensão da ciência
O último relatório da pesquisa global State of Science Index – SOSI, que mede a percepção da sociedade sobre a ciência anualmente, demonstrou que a confiança dos brasileiros na ciência cresceu no primeiro ano de pandemia.
O ceticismo em relação à pesquisa científica caiu de 42% para 33% entre os mil brasileiros respondentes. Além disso:
- 86% deles concordam que a ciência desempenha um papel crítico na resolução das crises de saúde pública;
- 89% disseram que a ciência precisa de mais financiamento;
- 88% acreditam que a ciência tornará suas vidas melhores nos próximos 10 anos;
- 92% acreditam que as pessoas devem seguir os conselhos científicos para conter o vírus;
- 86% dos brasileiros acreditam que há consequências negativas para a sociedade se as pessoas não valorizarem a ciência.
Apesar dos números favoráveis, é notável que o conhecimento científico, especialmente o de autoria nacional, nunca teve o reconhecimento merecido no país.
Observa-se um escancarado desentendimento (inclusive em materiais publicados em grandes veículos de comunicação) sobre o que, de fato é a ciência, bem como seus métodos e processos.
No entanto, isso não parece reduzir o impacto dos gatilhos mentais citados. Os charlatões adoram estampar currículos pomposos e até o mais chato negacionista gosta de compartilhar supostas “descobertas científicas” para validar seus delírios.
É uma espécie de confiança seletiva: quando os dados dizem o que eles querem ouvir, eles aprovam; quando apontam em outra direção, eles negam.
Reduzem o debate científico a uma mera questão de opinião, misturando evidências (muitas vezes questionáveis) com palpites sem fundamento.
Acredito que a ciência tem sim autoridade. Entretanto, a compreensão popular sobre ela deixa muito a desejar. E é ai que está o problema.
Toneladas de conteúdos ditos científicos na imprensa, na internet e até em periódicos acadêmicos, estão apenas fantasiados de ciência — se aproveitam de sua relevância e da má compreensão do público sobre o assunto para promover informações falsas.
A boa notícia é que é possível se prevenir. Ou seja, aguçar o olhar para o conteúdo divulgado nas mídias e, quem sabe, frear o crescimento das fake news da saúde e da ciência.
Ninguém precisa ser um acadêmico para interpretar, avaliar e discutir estudos científicos. Mas precisamos, no mínimo, entender como essas pesquisas funcionam e, principalmente, saber diferenciar a ciência daquilo que ela não é.
Isso, porém, é assunto para outro artigo: Aprenda a ler e a criar conteúdos de divulgação científica, sem ser cientista!
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